O artigo 19 do Marco Civil da internet é um dispositivo importante, que retira dos provedores de aplicações a responsabilidade por conteúdos infringentes em suas próprias plataformas, admitindo responsabilização apenas após ordem judicial específica de retirada do conteúdo descumprida.
A razão para existência do dispositivo é prática: Por sua própria natureza, as plataformas não fazem mediação prévia de aspectos subjetivos dos conteúdos. Somente no Youtube, 400 horas de vídeos novos são enviados a cada minuto; seria impossível exigir verificação individual desse material. Ademais, não se fale tampouco em verificação algorítmica. Embora existam algoritmos que vasculham as redes em busca de conteúdos de nudez ou violência, inexiste algoritmo capaz de verificar se, num contexto, alguém é ofendido em sua honra, por exemplo.
O artigo 19 estabelece, enfim, que o dever de valorar um conteúdo como lesivo nas redes, assim como acontece fora das redes, é do Poder Judiciário. Pensar de forma diferente levaria a grande insegurança e impossibilidade da continuidade das relações entre usuários e provedores de aplicação, algo de consequências inimagináveis.
Mudanças no artigo 19 do Marco Civil da Internet
Reconhecer a importância do Artigo 19 do Marco Civil da Internet não quer dizer defender sua imutabilidade. Entende-se que mudanças são bem vindas, principalmente aquelas reconhecendo a importância dos contratos entre os provedores de aplicação e os usuários (normalmente constantes dos termos de uso).
Ocorre que, conquanto o melhor caminho para esse tipo de mudança geralmente seja o Legislativo, a reforma ora proposta, que simplesmente revoga o artigo, não parece uma boa solução, por ignorar sua complexidade e necessidade.
Já o STF discute atualmente a constitucionalidade do artigo 19. A discussão é bastante restrita e, obviamente, não trará correções ou substitutivos ao dispositivo, mas apenas decisão sobre sua constitucionalidade, que acreditamos será corroborada, visto não haver ofensa à intimidade, honra, reputação, imagem ou qualquer outro direito constitucional das pessoas com a atual dinâmica da publicação de conteúdo.
Entendemos que eventual mudança em um dispositivo tão importante como o artigo 19 do Marco Civil da Internet deveria acontecer em comissão própria, com espaço para amplo e qualificado debate da sociedade civil e demais partes interessadas, considerando os impactos incalculáveis que uma simples revogação traria.
PL Fake News
O Projeto de Lei das Fake News muda a dinâmica de funcionamento dos provedores de aplicação no Brasil. Ao estabelecer como responsabilidade dos provedores a remoção de conteúdos com base em critérios subjetivos, o PL traz uma série de dúvidas sobre sua aplicação prática: Não se trata apenas de exigir a remoção de notícia falsa, trata-se de exigir o escaneamento contínuo da rede para identificar tudo aquilo que é falso ou não (algo que até mesmo seres humanos tem dificuldade em fazer) e então remover os conteúdos, sob penas diversas.
Sendo o conceito de desinformação do PL das Fake News tão aberto, uma vez vigente o PL, o artigo 19 do MCI fica bastante prejudicado, já que o PL exige a remoção administrativa, sob pena de multas, e o artigo 19 condiciona à ordem judicial de remoção. O PL das Fake News, por sua vez, ganha força caso o artigo 19 seja revogado, visto que seria o principal argumento contra sua aplicação por parte dos provedores de aplicação.
Conclusão
Por todo o exposto, entendemos que a simples revogação do artigo 19 do Marco Civil da internet tem o condão de gerar insegurança jurídica na relação entre usuários e plataformas, podendo ocasionar não apenas a impossibilidade de funcionamento dessas plataformas mas também o oposto do que se tenciona: ofensas à liberdade de expressão nas redes, decorrente da restrição subjetiva de conteúdos sendo executada por entes particulares.
Por Thiago Bento dos Santos
Advogado de Direito Digital pela Lopes & Castelo Sociedade de Advogados