A interpretação das normas de isenção tributária, quando relacionadas aos direitos fundamentais, notadamente a dignidade humana, devem ser realizadas com ampla atenção e perspicácia, sob pena de termos um sistema jurídico pura e simplesmente legal, que não promove a justiça social.
A doutrina moderna demonstra que velhos conceitos devem ser revistos, e as ideias que embasaram a construção destes, não sobreviveram e não se coadunam com a Constituição Federal de 1988.
Os direitos fundamentais, foram especialmente trazidos pela carta magna de 88, e, consoante prescreve o art. 5º, relaciona-se diretamente com os fundamentos, objetivos e princípios da República Federativa do Brasil. A garantia do mínimo vital e a primazia da dignidade humana, está diretamente ligada aos direitos fundamentais.
Sendo a isenção tributária uma regra de estrutura, cujo objetivo é regular as relações entre contribuinte e Estado, devem ser criadas, interpretadas e aplicadas de forma a garantir que os direitos fundamentais sejam efetivamente alcançados.
Por ter forte caráter extrafiscal e estando relacionada com os direitos fundamentais, em especial a dignidade humana, as normas de isenção não podem ser interpretadas de forma isolada, lhe sendo aplicada o método literal, conforme prevê o artigo 111, do Código Tributário Nacional, posto que se assim o fazendo, o interprete e aplicador da norma deixará de atender a sua real finalidade.
Assim, a interpretação das isenções tributárias quando relacionadas a dignidade humana, não podem ser negligenciadas pelo intérprete, posto que os princípios, fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, são normas de caráter axiológico e vinculam tanto o legislador infraconstitucional como quem as interpreta e as aplica.
Para que os princípios acima sejam atendidos, se faz necessária a aplicação do princípio da anterioridade na revogação ou redução de benefício fiscal, os quais são equiparados à majoração de tributos.
Em 1984, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 615, que afirmava não haver majoração de tributos quando da revogação de isenção de ICMS e, portanto, não se aplicaria o princípio da anterioridade.
Esse entendimento foi firmado antes da promulgação da Constituição da República, mas o STF permaneceu julgando nesse sentido ainda durante anos após o advento de nossa atual ordem constitucional.
O entendimento do STF era de que a isenção correspondia à inexigibilidade de tributo existente e, portanto, não dizia respeito ao aspecto da incidência do tributo. Desta forma, a revogação de uma isenção não implicaria na majoração do tributo, visto que esse já era existente. O tributo que passou a ser exigível, então a revogação de isenção não estaria submetida ao princípio da anterioridade, previsto atualmente no art. 150, III, b e c, da Constituição Federal.
A decisão mais recente sobre o tema teve a discussão iniciada em 2014, levada ao Supremo pelo RE 564.225/RS. O Min. Marco Aurélio negou seguimento monocraticamente ao recurso do Estado, afirmando que o acórdão recorrido estava em consonância com a “óptica adotada pelo Supremo no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.325/DF“.
O caso concreto trata de dois decretos que reduziram um benefício fiscal concedido a empresas de TV por assinatura. Havia um benefício que reduzia a base de cálculo a 20%, que foi ajustada para 48%, ou seja, elevou-se a carga total incidente. Os contribuintes alegavam que os decretos implicaram em majoração da carga tributária e, portanto, deveriam observar o princípio da anterioridade, anual e nonagesimal.
O Estado interpôs agravo que levou o feito à apreciação da Primeira Turma, que julgou o recurso extraordinário improcedente. O Ministro Dias Toffoli abriu a divergência em seu voto, relembrando que a jurisprudência tradicional do STF sempre seguiu em sentido inverso e que não teria mudado de orientação, mesmo após o julgamento da ADI 2.325/DF. Citou diversos julgados, contemporâneos e anteriores à Constituição.
O Min. Roberto Barroso seguiu o relator e expressamente opina que “a ocasião é oportuna para revisitar a jurisprudência da Corte”, e o faz. A manifestação de Barroso que inaugura seu entendimento sobre a matéria:
“A concepção de anterioridade que me parece mais adequada é aquela que afeta ao conteúdo teleológico da garantia. O princípio busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal ao não permitir que o contribuinte seja surpreendido com um aumento súbito do encargo, confirmando o direito inafastável ao planejamento de suas finanças. O prévio conhecimento da carga tributária tem como fundamento a segurança jurídica e como conteúdo a certeza do direito.
Deve ser entendida como majoração do tributo toda alteração ocorrida nos critérios quantitativos do consequente da regra-matriz de incidência. Sob tal perspectiva, um aumento de alíquota ou uma redução de benefício relacionada a base econômica apontam para o mesmo resultado: agravo do encargo. (…)”
A Ministra Rosa Weber seguiu a divergência em respeito à jurisprudência tradicional do STF, declarando que não a impede de no futuro julgar diferente: “sem prejuízo de, quem sabe, em um outro momento, revisitar a matéria e continuar a refletir sobre ela“. Fux votou com o relator, formando maioria pelo não provimento do recurso. O Estado no RS interpôs Embargos de Divergência, no qual o Min. Alexandre de Moraes inicialmente rejeitou haver divergência, assim, foram opostos embargos de declaração.
Por fim, em 09/10/2020, foi encerrado o julgamento dos embargos declaratórios. O Min. Alexandre de Moraes resolveu manifestar sua convicção pessoal, de que à espécie se aplicaria exclusivamente a anterioridade nonagesimal, não a anual: “Assim, o entendimento firme, consolidado e unânime da CORTE determina a aplicação exclusivamente da anterioridade nonagesimal, prevista no art. 150, III, c, da CF/88, nas hipóteses de redução ou de supressão de benefício fiscal.”
Todavia, o Min. Dias Toffoli abriu a divergência, desta feita para afirmar que a revogação ou redução de benefício fiscal equipara-se à majoração de tributos e, portanto, deve obediência ao princípio da anterioridade. No caso do ICMS, deve observar ambas as modalidades de anterioridade. Já quanto às contribuições para a seguridade social, cabe somente a noventena.
O Min. Barroso seguiu a divergência, reafirmando posição que já vinha defendendo. Transcrevo trechos da ementa do voto proferido:
Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ICMS. REVOGAÇÃO DE BENEFÍCIO FISCAL. MAJORAÇÃO INDIRETA DE TRIBUTO. APLICAÇÃO DAS ANTERIORIDADES.
(…)
- Na origem, a controvérsia abrange a análise de decretos estaduais, que promoveram a majoração da base de cálculo do ICMS devido por prestadores de serviços de televisão por assinatura. Referidos atos normativos extinguiram benefício fiscal concedido aos contribuintes, que consistia em redução da base de cálculo do ICMS, configurando, assim, um agravamento da carga tributária a ser suportada.
- O princípio da anterioridade busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal ao não permitir que o sujeito passivo seja surpreendido com um aumento súbito do encargo, o que inviabilizaria qualquer tipo de planejamento financeiro. O prévio conhecimento da carga tributária tem como fundamento a segurança jurídica, conforme já reconhecido por esta Corte, ao reconhecer a necessidade de respeito à anterioridade anual e a noventena, diante do aumento indireto de tributo, como a revogação de benefício fiscal que tenha reduzido a base de cálculo de determinada exação.
- Ausência de qualquer dos vícios do art. 1.022 do CPC, isso porque o acórdão embargado consignou que ambas as Turmas desta Corte estabelecem que se aplica o princípio da anterioridade tributária anual e da noventena, a depender das disposições constitucionais acerca de cada tributo, nas hipóteses de redução ou de supressão de benefícios ou de incentivos fiscais, haja vista que tais situações configuram majoração indireta da carga tributária.
- Desse modo, voto por divergir do relator, e negar provimento aos embargos de declaração, a fim de manter o acórdão embargado.
Seguiram a divergência para formar maioria, em resumo: Dias Toffoli, Roberto Barroso, Marco Aurélio, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Celso de Mello. Destaque-se que esse julgamento representa uma revisão de posicionamento por parte de Dias Toffoli, Barroso e Weber.
O que se pode concluir, de todo esse histórico, é que resta consolidada a nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que a REDUÇÃO DE BENEFÍCIO FISCAL IMPLICA A MAJORAÇÃO DE TRIBUTOS, DEVENDO OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE.
Tamires de Morais Reis
Advogada Tributária da Lopes & Castelo Sociedade de Advogados