Uma só família repatriou R$ 48 bilhões sem pagar R$ 2 bilhões de imposto. Estado de SP já deixou de arrecadar R$ 5,5 bilhões
Uma família em São Paulo deixou de pagar R$ 2 bilhões do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) após receber doações de R$ 48 bilhões do patriarca, ainda vivo. A cobrança foi congelada devido a uma série de recursos no Judiciário. Não se trata de um fato isolado. Famílias abastadas têm se utilizado de doações e heranças provenientes do exterior para driblar a tributação no estado de São Paulo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar na sessão do plenário virtual que tem início na próxima sexta-feira (23/10) o RE 851.108, de relatoria do ministro Dias Toffoli. No recurso, é discutida a constitucionalidade da lei estadual 10705/00, que estabelece a incidência do tributo sobre doações provenientes do exterior. Apesar de o caso debater especificamente a lei paulista, a decisão do STF tem impacto nacional, já que o tema é discutido em repercussão geral e outras unidades federativas do país têm leis sobre a incidência do tributo.
Um levantamento feito pelo Grupo de Atuação Especial para Recuperação Fiscal (Gaerfis), unidade de combate a fraudes fiscais estruturadas e planejamento tributários ilícitos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, monitorou 200 ações judiciais que tramitam no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Os valores das doações e heranças, somados, chegam R$ 55 bilhões. Com a incidência do ITCMD sobre essas doações, o estado de São Paulo arrecadaria R$ 5,5 bilhões. O valor é maior do os R$ 3 bilhões de arrecadação total com o ITCMD em 2019 em São Paulo.
Segundo um procurador do Estado de São Paulo entrevistado pelo JOTA, famílias muito ricas se utilizam de “remessas bilionárias em espécie ou travestidas de integralização de capital, que são enviadas ao exterior, principalmente a reconhecidos paraísos fiscais”.
Em seguida, explica o procurador, inicia-se o “retorno” do dinheiro, não mais ao patriarca, mas a seus herdeiros. Isso ocorre por meio da doação de quotas dessas empresas.
“É uma nítida dissimulação com o propósito de os beneficiários do planejamento tributário sucessório se furtarem e não recolherem o tributo, valendo-se de uma interpretação equivocada e míope da competência legislativa dos estados em matéria de tributária”, afirma.
O processo no STF
No STF, o estado de São Paulo defende que a lei estadual é válida e a unidade federativa tem autonomia para legislar sobre cobranças e a arrecadação em seu próprio estado no caso de falta de uma Lei Complementar por parte do Congresso Nacional.
A contribuinte, contudo, afirma que o debate é um tema nacional e, por isso, seria necessária a edição de uma Lei Complementar pelo Congresso Nacional para dar a diretriz aos estados sobre como tributar as doações do exterior.
Anteriormente, por meio de decisão monocrática no Agravo de Instrumento 805.043/RJ, o ministro Ricardo Lewandowski não viu problemas na lei estadual do Rio de Janeiro que prevê a incidência do ITCMD sobre doações vindas do exterior.
Segundo a decisão do ministro, “em diversas oportunidades esta Corte decidiu que na ausência da lei complementar referida, os Estados não ficam impedidos de instituírem os impostos de sua competência”.
Ele acrescenta que “segundo entendimento firmado por ambas as turmas deste Tribunal, ante a omissão do legislador federal em estabelecer as normas gerais pertinentes, os Estados-membros, também em matéria tributária, podem fazer uso de sua competência legislativa plena”.
Tribunais estaduais
Um dos casos mais famosos sobre a temática ocorreu após a morte de Dorothea Steinbruch, mãe de Benjamin Steinbruch, dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Foram onze mandados de segurança impetrados, todos em São Paulo, para a não cobrança do ITCMD de seus onze netos.
Em 2016, houve pelo menos seis decisões favoráveis à família Steinbruch. O principal argumento dos magistrados que decidiram, em 2016, pela não tributação é que não existe uma lei complementar para regulamentar o assunto. Assim, segundo as decisões, o estado de São Paulo não poderia suprir essa omissão do legislador.
Houve também sentenças favoráveis ao estado de São Paulo, como as que foram tomadas nas 11ª e 3ª Varas de Fazenda Pública. O juiz Fausto José Martins Seabra, da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, entendeu que “os documentos anexados pelos impetrantes são alvo de fundadas dúvidas do Fisco e não permitem a conclusão segura de que as teses desenvolvidas na petição inicial correspondem aos fatos ocorridos. Tanto é verdade, que as doações realizadas aos impetrantes e familiares ensejaram até a abertura de investigação criminal”.
Todas doações foram feitas por meio de uma fundação panamenha chamada Fundação Doire. Somadas, elas ultrapassam R$ 1,5 bilhão. O estado de São Paulo conseguiu reverter todas as decisões que haviam sido favoráveis à família Steinbruch e a execução fiscal já teve início.
Tribunais de Justiça de estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul também já proferiram decisões a favor da tributação das doações do exterior em processos envolvendo outras famílias.
O argumento em comum usado pelos magistrados é que há “competência estadual plena para editar norma regulamentadora até o advento da legislação complementar federal”, conforme acórdão redigido pelo desembargador Paulo Henrique Moritz Martins da Silva, da 1ª Câmara de Direito Público do TJSC, em março de 2020.
Discussão nacional
Segundo Thiago Barbosa Wanderley, sócio do Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados, a matéria tem “nítido caráter nacional, que não pode ser usurpado pelos estados sob pena de ofensa ao artigo 146 da Constituição Federal”, avalia.
O trecho da Constituição citado pelo tributarista estabelece que “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”. O artigo da Constituição é uma das bases de argumentação das famílias no STF.
“Entendemos que referida limitação somente pode ser ultrapassada mediante edição de Lei Complementar Nacional, na qual o Estado Brasileiro estabeleceria os ditames a serem obedecidos por cada unidade federada para alcançar a riqueza existente além das fronteiras brasileiras”, afirma o tributarista.
No STF, entretanto, o estado de São Paulo deve concentrar sua defesa no impacto econômico, na ordem de bilhões por ano, gerado pelo “drible” na arrecadação do ITCMD. “O sistema jurídico que tributa a herança dos trabalhadores e deixa indene e perfeitamente hígida a fortuna de grandes empresários e banqueiros que remetem suas riquezas ao exterior, geralmente com destino a reconhecidos paraísos fiscais, para que, ato contínuo, tais valores retornem ao Brasil a seus descendentes com a perspectiva de nada recolheram a título de imposto sobre doação ou causa mortis, configura um privilégio inaceitável”, afirma um dos procuradores do Estado de São Paulo que atuam no caso.
“Recursos que fazem falta a setores como saúde, educação e segurança pública estão garantindo a riqueza de poucos em prejuízo de toda a sociedade”, concluiu o profissional.
Por Alexandre Leoratti
Fonte: jota.info
STF definirá se doações do exterior sofrem incidência do ITCMD