Tribunais paulistas estão selecionando os primeiros casos para julgamento em repetitivo. A forma como têm utilizado o mecanismo, no entanto, chama a atenção no meio jurídico por fugir às regras convencionais. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por exemplo, decidiu que um processo pode ser admitido como repetitivo sem que, necessariamente, as demais ações sobre o tema sejam suspensas.

O entendimento se deu na análise de um pedido para a aplicação do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) – como é chamado o instrumento na segunda instância – de um caso relacionado ao atraso na entrega de imóveis adquiridos na planta. Já em outros três temas também admitidos como repetitivo, os desembargadores mantiveram a suspensão das ações.

O IRDR é um mecanismo recente para o Judiciário. Foi uma das novidades do novo Código de Processo Civil (CPC), que ainda não tem um ano de vigência. A lógica, porém, é a mesma praticada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): um único processo é analisado e a decisão vale para todos os outros que tratam do mesmo tema.

A decisão de admitir um caso e não suspender os demais, pelo TJ-SP, não é comum e tem provocado polêmica no meio jurídico. Isso porque, segundo advogados, o novo código prevê a suspensão como sendo condição automática ao mecanismo. Há dois artigos que abordam a questão.

Um deles, o 313, dispõe justamente sobre as hipóteses de suspensão de um processo. No inciso 4º consta a admissão de incidente de resolução de demandas repetitivas. O outro artigo é o 982, que trata sobre o procedimento do IRDR em si. Nele, consta que “admitido o incidente, o relator suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região”. Essa suspensão teria de ser mantida até o julgamento do tema ou pelo período de um ano.

“O código não dá a opção de suspender ou não os processos. Consta como condição obrigatória”, afirma o advogado Marcelo Annunziata, do escritório Demarest, que já ingressou com pedidos de aplicação do IRDR em outros tribunais.

O caso admitido como repetitivo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, foi considerado como excepcional pelos desembargadores. Envolve questões relacionadas ao atraso na entrega de imóveis, nos contratos de compromisso de compra e venda entre as construtoras e os seus clientes – como indenização, multas contratuais e restituição de valores. Há cerca de 200 mil ações sobre esse tema no Judiciário paulista.

Em entrevista ao Valor, o relator do caso, desembargador Francisco Loureiro, diz que a questão foi muito discutida pela turma que admitiu a aplicação do IRDR. “Não foi uma decisão isolada”, afirma. A excepcionalidade do caso, segundo ele, deve-se ao fato de que ações sobre esse tema costumam ter, em ampla maioria (calcula-se entre 80% e 90% do total) decisões de primeira instância em conformidade com o entendimento do tribunal. Enquanto que o número de sentenças divergentes varia entre 10% e 20%.

“Não valeria a pena suspender 80% dos casos que serão julgados de acordo com o entendimento do tribunal para salvar os 15% que serão julgados de forma diferente. Haveria mais prejuízos com a suspensão do que benefícios”, justifica o desembargador Loureiro. “O IRDR visa a questão da segurança jurídica, que casos parecidos tenham a mesma solução, mas visa também agilizar os julgamentos. E, nesse caso, nós vimos que é muito mais fácil deixar os 15% em desacordo e nós mudarmos depois do que atrasarmos milhares e milhares de processos” acrescenta.

Presidente da Comissão de Estudos de Processo Civil do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Eduardo Arruda Alvim discorda da decisão dos desembargadores. Ele entende que se as decisões têm sido proferidas em um mesmo sentido, não haveria motivos para instaurar o incidente. “O pressuposto [do IRDR] é que haja risco à segurança jurídica. Se o tribunal reconhece que não há risco, deveria ter inadmitido. Essa é a leitura que a doutrina tem feito”, pondera.

Já para advogado Michel Schifino Salomão, o IRDR poderia ser aplicado mesmo a temas já sumulados pelo tribunal ou que tenham sido abordados em enunciados. “Porque não têm [súmulas e enunciados] nenhum poder de evitar a instauração ou a propagação de demandas. Eles simplesmente indicam qual é a posição do tribunal. O incidente, por outro lado, firma a jurisprudência em determinado sentido e deve necessariamente ser observado pela instância inferior”.

O advogado entende ainda que há espaço para se discutir sobre a suspensão ou não dos processos. Ele diz que existem debates sobre isso no meio jurídico e que parte da doutrina acredita como sendo a melhor leitura para o dispositivo que instituiu o IRDR a que dá a possibilidade de os desembargadores decidirem.

“Prendê-los a uma disposição engessada seria ruim do ponto de vista da isonomia jurídica”, diz. “Os desembargadores devem ponderar o risco. Se manter o curso das demandas irá preservar os princípios que são vislumbrados por esse incidente [IRDR], caberá a eles decidir manter”, completa.

Novidade ainda para a segunda instância, o IRDR foi pouco usado pelos tribunais do país até agora. O TJ de São Paulo, por exemplo, o maior entre os estaduais, já admitiu alguns casos, mas não julgou o mérito de nenhum deles. Essa questão relacionada ao atraso na entrega de imóveis adquiridos na planta está pautada para o mês de fevereiro – e deverá ser o primeiro IRDR com julgamento de mérito na Corte paulista.

Há ainda ao menos outros três temas também admitidos como repetitivo e que devem ter o mérito julgado pelo TJ-SP no primeiro semestre. Entre eles, a possibilidade de ajuizamento de ação de prestação de contas por correntistas sem o indicativo dos lançamentos reputados indevidos. Nesse caso, o tribunal determinou a suspensão dos demais processos sobre o tema. Ao todo, 70 ações tiveram o trâmite paralisado.

Um outro, que acarretou na suspensão de 413 processos, trata dos direitos remuneratórios e previdenciários dos soldados contratados em regime temporário pela Polícia Militar. E um terceiro tema admitido como IRDR aborda a possibilidade de investidores resgatarem garantias que tiveram o limite máximo majorado entre a decretação da intervenção e a decretação da liquidação extrajudicial de instituição financeira associada ao fundo. Nesse caso, cerca de 40 processos foram suspensos.

Por Joice Bacelo

Fonte: Valor Econômico

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